HENRIQUE RODRIGUES

A Liberdade de Associação

1 - Uma das coisas que me tem causado estranheza e perplexidade, em muitos processos, judiciais ou extra-judiciais, que têm ocupado o espaço público e mediático, é o facto de juízos, observações ou factos pouco abonatórios, quer para o emissor, quer para quem é objecto deles, constarem de suportes de informação físicos, seja em registo escrito, como a correspondência, electrónica ou tradicional, ou despachos escritos, seja em registo audiovisual, como o vídeo, ou fotografias, ou conversas telefónicas, estas passíveis de escuta e transcrição.

Essa prova física do que se disse inibe a desculpa fácil da negação do que fora dito, ou dos factos, já que a comprovação destes resulta óbvia do suporte físico e irrefutável do meio onde a informação circula.

A prova da realidade destrói, pela sua própria força, a negação dessa mesma realidade.

Constitui como que uma confissão de que o que foi dito, foi mesmo dito; e foi dito por aquela mesma pessoa que consta do vídeo, ou da escuta, ou da carta…

E razão ainda de “mor espanto”, como diria Camões, é o facto de muitas das personagens que emitem tais declarações serem gente habituada a lidar com os media e de ser suposto, portanto, deverem ter o conveniente comedimento na formulação ad extra de afirmações mais controversas ou comprometedoras.

O caso de escola é o de José Sócrates.

Não cuido agora de saber se Sócrates é ou não culpado, do ponto de vista criminal, no que toca aos factos pelos quais é acusado pelo Ministério Público – embora, como todos os portugueses, tenha sólidas convicções sobre esse ponto.

Não; do que se trata é da facilidade com que o antigo Primeiro-Ministro se deixou enredar, e deixou abundante rasto, em conversas e registos, de teor no mínimo equívoco, conversas essas abundantemente escutadas e transcritas e de que a comunicação social nos fez o favor de informar.

Independentemente da culpa criminal, ou da prova desta, e sem entrar, a este propósito, na questão de saber se tais escutas foram ou não lícitas e podem ou não servir como meio de prova, de uma coisa estamos certos: José Sócrates teve mesmo aquelas conversas que foram vindo à luz nos jornais e nas televisões, que ouvimos com a sua própria voz e que nos esclarecem, pelo menos, quanto ao carácter e aos valores morais da personagem.

O mesmo se diga do Apito Dourado, em que a ilicitude das escutas como meio de prova, tendo embora tido efeitos no arquivamento do processo, não deixou de causar um efeito semântico da língua, pelo enriquecimento polissémico de palavras como “fruta”.

Ou, ainda no futebol, não deixa de ser espantosa a ingenuidade de quem trata por escrito e nas redes, como se ficassem sempre nessas catacumbas, os diversos modos de persuasão dos árbitros – de que o acesso à correspondência electrónica, nas últimas épocas, de pessoas associadas ao Benfica constitui o mais recente e edificante exemplo.

2 – O recente episódio das “Raríssimas” veio-nos igualmente evidenciar um fenómeno do mesmo tipo.

Com efeito, antes mesmo do resultado das averiguações que o Ministério Público e a Inspecção-Geral da Segurança Social irão levar a cabo, e que a seu e devido tempo se saberá, o que imediatamente causou impacto, de forma muito negativa, mas irremediável, na imagem pública da sua Presidente, foram as afirmações constantes de vídeos, em que a mesma estipulava as regras de tratamento e protocolo a que os trabalhadores se encontravam submetidos na sua relação consigo; e em que instituía um legado sucessório da própria Instituição, em benefício de um herdeiro pessoal, como se de um bem próprio e disponível se tratasse.

Também não caiu bem uma observação, absolutamente despropositada, não mais do que uma bravata, no contexto, sobre o Presidente da República – quebrando a aparente unanimidade do País na avaliação superlativa do mandato presidencial, sem que se vislumbre o proveito da Instituição por essa afirmação pública de desafeição relativamente ao mais alto magistrado.

(Tal comentário, aliás, não ficou sem imediata resposta – sibilina - do visado, não obstante a reserva de pronúncia que tem mantido sobre o assunto.)

O registo em suporte escrito reforça a natureza exemplar – no mau sentido - do episódio; como se o agente se colocasse a si próprio acima do bem e do mal e nunca antevisse sequer como possível o efeito “boomerang” dos seus actos.

Desde as instruções ou sugestões escritas para que outros elementos da Direcção prescindissem do exercício das respectivas competências, concentrando todas estas na Presidência, até documentos explicitando, com pormenorização inútil, mesmo na sua perspectiva, a motivação oportunista para a contratação de um previsível futuro membro do Governo na área da Saúde, para acesso ao “guito”, nada falta no menu da imprudência e da exuberância discursiva.

3 – Ora, a “Raríssimas” é, do ponto de vista da sua natureza, uma associação – de solidariedade social, é certo; mas uma associação.

A ordem das palavras não é arbitrária: é uma “associação”, antes de ser “de solidariedade social”.

O direito de associação precede, na hierarquia constitucional, o direito a os cidadãos constituírem IPSS.

Com efeito, a liberdade de associação integra o Capítulo I – “Direitos, Liberdades e Garantias Pessoais”, do Título II – “Direitos, Liberdades e Garantias”, precedendo o direito à constituição de IPSS, consagrado no artº 63º da Constituição, disposição esta integrada num outro Título, o III – “Direitos e deveres económicos, sociais e culturais”, no Capítulo II – “Direitos e deveres sociais”, de menor densidade garantística.

Recordemos o que estabelece o artº 46.º da Lei Fundamental, justamente sobre a liberdade de associação:

“1. Os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal.”

“2. As associações prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas e não podem ser dissolvidas pelo Estado ou suspensas as suas actividades senão nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial.”

Este direito de os cidadãos prosseguirem a actividade associativa, “livremente e sem dependência de qualquer autorização” da autoridade administrativa, integra o núcleo essencial do carácter democrático da nossa Constituição, do ponto de vista do estatuto da cidadania.

Tal formulação, e a consequente exigência da abstenção administrativa no livre modo de organização e funcionamento das associações, procurou constituir o justo contraponto do modelo de funcionamento desse direito durante o fascismo.

Na verdade, o artº 8º, 14 da Constituição de 1933 também assegurava o direito de associação – mas o § 2º da mesma disposição fazia depender o exercício desse direito de legislação especial.

E, como recordam as pessoas da minha idade, esse exercício concreto do direito de associação dependia da autorização e vigilância da autoridade administrativa e das polícias, que mantinham esbirros a assistir, interromper e intimidar os presentes em reuniões de associações.

É caso para análise mais aprofundada – e voltaremos a esse tema – o ponto de saber se, e em que termos, a “tutela” a que estão submetidas as IPSS constitui uma versão, embora mais envergonhada, daquele regime de supervisão administrativa de má memória que a nossa Constituição democrática quis rejeitar.

E como a tensão entre a liberdade e a autonomia, pelo lado democrático, e a fiscalização, pelo lado autoritário, se podem ou não compatibilizar.

Bem como o de avaliar se as acções de fiscalização a que estão sujeitas, por vezes de forma intrusiva, as Instituições não vão contra o conteúdo essencial da liberdade de associação, e a correspondente autonomia de gestão, que constituem garantia constitucional.

4 – Também nesta perspectiva, em que nos encontramos perante uma Associação/Instituição com reconhecida capacidade de captação de receitas junto da sociedade, e em que os chamados “dinheiros públicos” alegadamente constituem a parte minoritária delas, será revelador da tensão a que me refiro o resultado e o alcance da inspecção.

(A propósito, os pagamentos feitos pelo Estado em cumprimento de contratos, nas parcerias público-privadas ou em empreitadas de obras públicas, também são chamados “dinheiros públicos”, como nos acordos de cooperação, para o efeito de sequela pela Administração Pública, como condição de legitimidade para esta vasculhar todas as actividades das empresas que contratam com o Estado?)

Espero que, ao menos, o âmbito das conclusões não chegue ao nível das ementas; e estas não considerem uma não-conformidade que se sirvam gambas aos embaixadores, em vez de carapaus de escabeche.

 

Data de introdução: 2018-01-05



















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