SETOR SOCIAL SOLIDÁRIO

IPSS são pilar incontornável do Estado Social em Portugal

As IPSS foram durante muito tempo quem deu (e ainda dá) a mão, o colo e de comer à população mais desfavorecida e são nos dias que correm um pilar fundamental na implementação das políticas sociais a que o Estado está obrigado. Elemento incontornável do Estado Social nascido com a Democracia, o Setor Social Solidário não nasceu por decreto, mas impõe-se ao País, ao Estado e à população como uma realidade dinâmica e a almofada social sempre presente nos bons e nos maus momentos. Por isso, generalizar e diabolizar todo um setor por um número residual de casos de polícia, não é sensato e muito menos justo para milhares de pessoas que dão o seu melhor, muitos voluntariamente, em prol do(s) outro(s).

Na sequência do recente caso envolvendo a Associação Raríssimas, largamente noticiado e escalpelizado (leia-se, comentado), em muitos casos sem qualquer conhecimento de causa, tanto na Comunicação Social, como nas redes sociais, houve uma espécie de tentativa de olhar o Setor Social Solidário como bode expiatório. Imprudentemente, tentou-se generalizar o que não é generalizável.
Como referiu em nota publicada no site da Presidência da República, após um encontro com a CNIS e a União das Misericórdias Portuguesas, Marcelo Rebelo de Sousa vincou “a ideia de não poder ser feita uma generalização destes casos”.
Neste sentido foi também a intervenção do primeiro-ministro, no habitual debate quinzenal no Parlamento, falando em nome do Governo.
“Não diabolizamos a ação das IPSS em geral a propósito de um caso concreto, nem diabolizamos a atividade de uma associação por factos eventualmente ilícitos praticados por uma dirigente dessa associação”, asseverou António Costa, que lembrou ainda que, apesar das muitas críticas, “ninguém ousou pôr em causa a qualidade do serviço que as IPSS prestam”.
O apelo para que “não se confunda a árvore com uma promissora floresta”, palavras das organizações da Economia Social portuguesa, em nota à Imprensa, refuta a generalização quando, segundo o Presidente da República, “a grande maioria delas (IPSS) trabalha de forma séria e dedicada, merecendo a confiança dos Portugueses no voluntariado e no trabalho dessas instituições sociais”.
Lancemos, então, um olhar sobre essa floresta para melhor percebermos o seu papel na sociedade portuguesa.
Presentes em todo o território nacional, desde a mais recôndita e pequena aldeia do Nordeste Transmontano até à ilha mais ocidental do Arquipélago dos Açores, as cerca de cinco mil IPSS superam em número, por exemplo, as Freguesias, que em 2016, depois da reorganização administrativa, eram 3.092.
A capilaridade é uma das grandes mais-valias das instituições sociais, pois nascidas das comunidades é junto delas que se mantêm, desenvolvem a sua atividade e, muito importante, ajudam ao desenvolvimento e coesão territorial.
A sua ação é transversal a toda a sociedade e está, axiológica e preferencialmente, centrada nas faixas da população que mais precisam e que menos têm.
Sendo também instituições sem fins lucrativos, têm respostas para acolhimento institucional para crianças e jovens em perigo, alojamento social de emergência, cantinas sociais, casas abrigo, centros (de acolhimento, de convívio, de dia e de noite para pessoas idosas, de apoio à vida e a toxicodependentes, de apoio familiar e aconselhamento parental, de comunitários e protocolares, de atividades ocupacionais e de tempos livres), creches, cuidados continuados integrados, jardins-de-infância, lares (nomeadamente de infância, juventude ou pessoas idosas), serviços de apoio domiciliário e ainda um conjunto de respostas (quase) criadas à medida para problemas e necessidades das comunidades. Já na área da deficiência, por exemplo, quase tudo o que se faz em Portugal é da responsabilidade direta das IPSS.
Em termos de Respostas Sociais tipificadas, segundo a Carta Social de 2015, o Setor Social Solidário registava: 2.673 Creches; 409 Centros de Atividades Ocupacionais (deficiência); 283 Lares Residenciais (deficiência); 2.086 Centros de Dia; 2.418 Estruturas Residenciais Para Idosos; e 2.707 Serviços de Apoio Domiciliário.
Mas a ação das IPSS vai mais longe, tocando todas as faixas da população através das inúmeras respostas sociais que dão resposta a populações-alvo: Crianças e jovens; crianças, jovens e adultos com deficiência; pessoas idosas; família e comunidade; pessoas toxicodependentes; pessoas infetadas com VIH/Sida; ou pessoas com doença do foro mental.

VALOR ECONÓMICO

No conjunto, o Setor Social Solidário dá resposta a mais de meio milhão de pessoas e emprega cerca de 200 mil trabalhadores, sendo que em muitas localidades as instituições sociais são os grandes empregadores, ou seja, o sustento de muitas famílias e o grande motor de desenvolvimento de territórios cada vez mais esquecidos e desertificados, especialmente no Interior do País.
A estes números, e só dentre as 2959 associadas da CNIS, somam-se mais de 32 mil dirigentes voluntários, dos quais um número muito residual (menos de 5%) o não são, ou seja, porque são remunerados pelas funções de Direção.
Por outro lado, e de uma forma mais global, de acordo com os dados da mais recente Conta Satélite da Economia Social, de 2013, a Economia Social representava 2,8% do Valor Acrescentado Bruto (VAB) nacional, 5,2% das remunerações, 6% do emprego remunerado e 5,2% do emprego total.
Em termos de VAB, a Ação Social, ou seja o Setor Social Solidário, representa quase 45% (1.879 milhões de euros) e, apesar de contabilizar apenas cerca de 9,1% das entidades da Economia Social (que eram em 2013 mais de 61 mil), regista, entre estas, 54,6% do emprego remunerado.
Já a propósito das transferências do Estado para as instituições, ao abrigo do Compromisso de Cooperação para o Setor Social Solidário, vertido nos Acordos de Cooperação, ao contrário do que muitos pensam, elas não atingem os 50%. Se no conjunto da Economia Social esse valor se fixa nos 26,7%, no Setor Social Solidário anda à volta dos 47%, o que refuta a ideia de este ser um setor subsídio-dependente.
Refira-se a este propósito que, ainda segundo a Carta Social, no ano 2000 foram transferidos ao abrigo dos Acordos de Cooperação por população-alvo menos de 800 milhões de euros, um valor que foi crescendo paulatinamente, fixando-se em 2015 abaixo de 1,3 milhões de euros.
Por tudo isto é evidente o papel fundamental que milhares de organizações, dirigentes, trabalhadores e voluntários têm no contributo para um pilar cada vez mais estruturante da sociedade portuguesa, e um dos que mais contribui, senão o que mais contribui, para uma maior justiça social.

ENQUADRAMENTO LEGAL

Na já referida nota da Presidência da República, o Chefe de Estado destacou “a necessidade de complementaridade entre o Estado e o Setor Social Solidário”, que de forma mais consistente e coerente vem sucedendo há mais de quatro décadas.
Façamos, então, um pouco de história para melhor perceber o Setor Social Solidário e o seu incontornável papel no Estado Social que temos em Portugal.
Entidades nascidas da sociedade civil, as Instituições Particulares de Solidariedade Social, apesar de só recentemente assim serem designadas, têm séculos de história e não é necessário recorrer apenas ao exemplo das Misericórdias. Muitas instituições emanadas da vontade das populações ou de benfeitores contam mais de 100 anos, na busca do bem-fazer e de ajudar os desvalidos da vida.
Esta realidade bem portuguesa das IPSS, cuja originalidade não encontra par na Europa dos Estados sociais, consolidou-se ao longo dos tempos e o Estado Português sempre a acolheu como elemento complementar na ação social a que está obrigado.
Se antes do 25 de Abril de 1974 o seu enquadramento jurídico era feito através do Código Administrativo e do Estatuto da Saúde e Assistência (Lei 2120, de 19 de julho de 1963), com o dealbar da Democracia este universo, que acabaria por crescer exponencialmente com os anos, foi sendo plasmado e alicerçado em diversa e sucessiva legislação.
A começar pela Constituição da República, logo na sua primeira redação, de 1976, que no seu Artigo 63º, depois de reconhecer que “todos têm direito à segurança social”, acrescenta no ponto nº 3 que “a organização do sistema de segurança social não prejudicará a existência de instituições privadas de solidariedade social não lucrativas, que serão permitidas, regulamentadas por lei e sujeitas à fiscalização do Estado”.
E isto aconteceu por imposição da realidade, uma vez que havia já um vasto rol de instituições à margem do Estado que desenvolvia ação social, num tempo em que o Estado era bastante omisso.
A lei fundamental do País reconhecia assim a vigorosa realidade que constituía, em Portugal, a iniciativa da sociedade civil nos amplos domínios da solidariedade social.
E é nesse sentido que, três anos volvidos, o Ministério dos Assuntos Sociais emana o Decreto-lei nº 519-G2/79, que aprova e publica o estatuto das, então ainda chamadas de, Instituições Privadas de Solidariedade Social.
Dois anos depois nascia a 15 de janeiro a CNIS, à altura ainda denominada UIPSS (União das Instituições Privadas de Solidariedade Social).
Aquele diploma seria revogado quatro anos passados, pelo Decreto-Lei nº 119/83, que aprovou o estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, que recebeu, em 2014, a quinta e mais recente alteração, através do Decreto-Lei nº 172-A/2014, que hoje está em vigor.
Com a redação do Decreto-lei nº 119/83, “desenvolveu-se, por este modo, o processo de autonomização das instituições e de distanciamento do velho regime da tutela administrativa das antigas «instituições particulares de assistência», já iniciado com a publicação do Decreto-Lei n.º 519-G2/79, ainda que sem prejuízo do exercício dos poderes constitucionais de regulamentação e fiscalização que ao Estado competem”.
Consagrado, pela Carta Magna, “o direito de livre constituição de Instituições Particulares de Solidariedade Social não lucrativas, tendo em vista a prossecução de objetivos de segurança social, nomeadamente através do desenvolvimento de atividades de ação social de apoio à família, infância, juventude, população com deficiência e à terceira idade”, o Setor Social Solidário tem florescido, acudindo a cada vez mais pessoas e dando mais, melhores e inovadoras respostas às necessidades das populações, em especial das mais desfavorecidas.
Por outro lado, com o reconhecimento constitucional da Economia Social – a propriedade dos meios de produção é atribuída aos setores público, privado e cooperativo e social –, o Setor Social Solidário ganha conforto legal por outra via.
Mais recentemente, através da Lei 30/2013, de 8 de maio, mais conhecida por Lei de Bases da Economia Social, este setor ganha nova força, a que não são também alheias as mais recentes movimentações das organizações que a integram, como seja a constituição da Confederação da Economia Social Portuguesa, a criar até 31 de Março de 2018.
Apesar de não regular diretamente as IPSS, a Lei de Bases da Economia Social abre novos campos de ação às IPSS e clarifica algumas situações que até àquela data levantavam dúvidas.

COOPERAÇÃO COM O ESTADO

É, assim, neste cenário e num quadro de complementaridade e subsidiariedade que a relação de cooperação entre o Estado e as IPSS tem vindo a construir-se.
Em 20 de Maio de 2017 assinalaram-se 25 anos do Despacho Normativo nº 75/92, em que o Ministério do Emprego e Segurança Social estabeleceu as normas reguladoras de cooperação entre os Centros Regionais de Segurança Social e as Instituições Particulares de Solidariedade Social, revogando os despachos nº 12/88 e nº 118/84.
“A cooperação entre os centros regionais e as instituições tem por finalidade a concessão de prestações sociais e baseia-se no reconhecimento e valorização, por parte do Estado, do contributo das instituições para a realização dos fins da ação social, enquanto expressão organizada da sociedade civil”, pode ler-se no documento.
Este é um diploma que surge depois da tentativa de municipalização das políticas sociais e de um longo período de tempo em que as negociações entre as IPSS e o Estado eram feitas através de técnicos da Segurança Social.
A consolidação do novo caminho de cooperação iniciado com o Despacho Normativo nº 75/92 ganhou outra dimensão quando, a 19 de dezembro de 1996, foi assinado o Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social, pela CNIS (então UIPSS), Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), a Associação Nacional de Freguesias (ANAFRE), a União das Misericórdias Portuguesas (UMP) e a União das Mutualidades Portuguesas (UMP).
Esta relação entre o Estado e o Setor Social Solidário tem vindo a ser renovado periodicamente – nos últimos tempos de dois em dois anos e alargado aos ministérios da Saúde e da Educação – e é o reforço do reconhecimento do importante e insubstituível papel das instituições sociais na aplicação e disseminação das políticas sociais.
E o que os anos e os resultados têm vindo a mostrar é que as IPSS são peça incontornável do Estado Social, nascido em Abril de 1974, e que o Setor Social Solidário é hoje uma realidade cada vez mais essencial ao futuro desse Estado Social, que almeja levar a solidariedade a todos os que precisam.
Esta é uma relação de compromisso com dois sentidos, uma realidade assumida e reconhecida por todos e que não pode ser posta em causa por um número residual de casos de polícia, pondo-se, imprudentemente, em cheque milhares de utentes, milhares de trabalhadores e milhares de voluntários.
“A necessidade de complementaridade entre o Estado e o Setor Social Solidário”, como referiu o Presidente da República, é essencial à prossecução das políticas sociais traçadas pelo primeiro e implementada pelo segundo, “sendo certo”, ressalvou, “que cabe ao Estado assegurar um acompanhamento rigoroso e próximo do funcionamento destas instituições, quer na qualidade dos serviços prestados, quer no bom e rigoroso uso dos fundos públicos postos à sua disposição”.
E se muitas das críticas, grande parte infundada, se prenderam com a organização das instituições e a (pseudo) falta de fiscalização por parte do Estado à atividade das instituições, os números e a experiência de quem está ao leme das IPSS desmentem-no categoricamente.
Entre 2015 e novembro de 2017, o Instituto de Segurança Social (ISS) realizou 1.615 ações de fiscalização a Instituições Particulares de Solidariedade Social, tendo apresentado ao Ministério Público 71 propostas de destituição dos corpos gerentes das associações e 46 de suspensão de acordo de cooperação.
Das 1.615 ações de fiscalização a um universo de cerca de cinco mil IPSS, 588 foram auditorias jurídicas e financeiras. De acordo com os mesmos dados, foram ainda levantados 1.710 autos de contraordenação e detetados 61 ilícitos criminais.
Ora bem, não podemos esquecer que estamos no âmbito da atividade humana e que a tentação para os pobres de espírito é sempre o caminho mais fácil.
Para obstar a que situações negativas ganhem terreno no seio das IPSS e com o fito na melhoria da prestação, organização e gestão das instituições, a CNIS tem promovido ao longo dos anos diversas ações de formação e capacitação de dirigentes e técnicos com o propósito de melhorar a eficiência da gestão das organizações, muitas vezes lideradas por gente de boa vontade e de grande espírito solidário, mas que nos dias que correm já não chega.
E quem conhece as IPSS sabe que a grande prioridade é a qualidade do serviço e o bem-estar dos utentes, daí a grande preocupação com a formação e a capacitação dos dirigentes, técnicos e demais funcionários, a melhoria das instalações e a permanente busca em melhorar e inovar as respostas face às necessidades do presentes e os desafios do futuro.

Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)

 

Data de introdução: 2018-01-05



















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